terça-feira, 22 de junho de 2010

Pena de vida

O futebol fica de “bola cheia” com as inesquecíveis músicas de Jorge Ben Jor. País tropical, de 1969, é o hino popular do brasileiro típico, cuja identidade malandra se fundamenta, entre outras coisas, na exaltação do esporte bretão. Em 1972, o band leader lançou Fio Maravilha, homenagem ao centroavante rubro-negro, autor de um gol antológico no Maracanã, que emocionou o menino Jorge presente ali: “Tabelou, driblou dois zagueiros/Deu um toque, driblou o goleiro/Só não entrou com bola e tudo/Porque teve humildade em gol/Foi um gol de classe/Onde ele mostrou sua malícia e sua raça/Foi um gol de anjo/Um verdadeiro gol de placa/Que a galera agradecida assim cantava/Fio Maravilha, nós gostamos de você/Fio Maravilha, faz mais um pra gente ver”. Em Zagueiro, de 1975, foi a vez de o músico salientar a importância, para a equipe, de um defensor que soubesse a hora de cadenciar o jogo e o momento de jogar firme: “Para ser um bom zagueiro/Não pode ser muito sentimental/Tem que ser sutil e elegante/Ter sangue frio/Acreditar em si/E ser leal/Zagueiro tem que ser malandro/Quando tiver perigo com a bola no chão/Pensar rápido e rasteiro/Ou sai jogando ou joga a bola pro mato/Pois o jogo é de campeonato/Tem que ser ciumento/E ganhar todas as divididas/E não deixar sobras pra ninguém/Tem que ser o rei e o dono da área/Nessa guerra maravilhosa de 90 minutos”.
Pelo futebol, aprendemos a amar o torto, a alegria do povo, conforme bem ilustrou o poeta Nicolas Behr, no livro Beijo de hiena (1993): “nem tudo que é torto/é errado/veja as pernas/do Garrincha/e as árvores do cerrado”. O problema é quando o desvio-padrão criativo sai de cena para entrar o desvio-padrão destrutivo. A invasão de campo feita pela brutalidade é o reflexo da pisada de bola dos cabeças de bagre. Estão de “bola murcha” os trogloditas que, numa atitude machista e homofóbica, agridem física e moralmente os torcedores do Atlético Mineiro que resolvem vestir o uniforme rosa lançado recentemente pelo próprio clube. Trata-se de um remake do preconceito sofrido pelo ex-goleiro cruzeirense Raul Plassmann, que, nos anos 60, ao utilizar a cor amarela em seu uniforme, foi atacado pela heterotirania de torcedores retrógrados.
A intolerância do Planeta Bola provocou no poeta Eduardo Alves da Costa uma crítica plausível, expressa em Outra canção do exílio (1985): “Minha terra tem Palmeiras,Corinthians e outros times/De copas exuberantes/Que ocultam muitos crimes”. Para mostrar como a zebra anda solta nos gramados, o ex-árbitro chinês Lu Jun, que apitou na Copa do Mundo de 2002, pode ser condenado à pena de morte se for comprovado o envolvimento dele no esquema de manipulação de resultados em jogos realizados na China. Infração semelhante foi cometida pelo ex-árbitro brasileiro Edílson Pereira de Carvalho. Onze partidas do Campeonato Brasileiro de 2005 apitadas por ele foram anuladas pela CBF e tiveram que ser realizadas novamente. Figura central do escândalo da “máfia do apito”, Edílson foi banido do futebol e condenado pelos torcedores a ter seu nome gritado nos estádios como xingamento correspondente ao de “juiz ladrão”. Na Justiça Comum, porém, ele não foi julgado porque não está prevista na lei brasileira a condenação de árbitros que manipulem resultados de eventos esportivos. Enquanto isso, na China, Lu Jun pode ser condenado à pena capital.
Pergunto aos adeptos da pena de morte: matar resolve? O Estado tem o direito de executar quem cometeu um delito? A pena de morte é eficaz para intimidar a ação criminosa? O sujeito que viola a lei penal deve perder, com isso, o direito à própria vida? “Qual pode ser o direito que se atribuem os homens para trucidar os seus semelhantes?”, perguntava o jurista italiano Cesare Beccaria, no ensaio Dos delitos e das penas, de 1764. “A pena capital é o mais premeditado dos assassínios”, alertava Albert Camus, opositor intransigente do Estado que mata. O escritor argelino enxergava na pena de morte um elemento de sadismo oficial inigualado por criminoso algum, pois o Estado emprega um número de pessoas e uma determinada soma de seus fundos apenas para executar um de seus cidadãos.
A pena de morte é manifestação vingativa. O que sinalizaria um paradoxo: o papel do Estado não é o de verdugo. Criminosos devem ser julgados com o rigor da lei. A justiça nasce contra a vingança, isto é, contra a ideia de que alguém cobre “olho por olho, dente por dente” de outro alguém. A pena tem como objetivo não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública. O criminoso deve sofrer uma sanção para desencorajar outras pessoas a imitá-lo. Essa é a prerrogativa que norteia, modernamente, o Estado Democrático de Direito. Este, diferentemente do Estado Ditador de Deveres, deve se pautar pelo princípio educativo do “zelar e compreender”. Opostas a este paradigma, encontram-se as atrocidades destacadas por Michel Foucault, em Vigiar e punir (1975). Em defesa de tais parâmetros, a condenação à morte, segundo o filósofo francês, se mostra, na realidade, como uma mistura de fascínio pelo mal e regozijado alívio pela punição de quem ultrapassou os limites. Ou seja, trata-se de uma válvula de escape para os instintos agressivos de grande parcela da população.
Denominador comum entre a barbárie primitiva, o fanatismo medieval e o totalitarismo moderno, a pena de morte é inconcebível em um mundo que, desgastado pela deseducação vertical à Pinochet, acena para a educação horizontal à Piaget. Torcemos pela substituição definitiva da palmatória opressora pela pedagogia libertadora. Mesmo considerando a possibilidade de o ex-árbitro chinês ter pisado na bola, nada justifica a expulsão de Lu Jun do jogo da vida. Assim como canta o grupo Pedro Luís e A Parede: “sou a favor da pena de vida/se o sujeito cagou/pisou na bola/tem que resolver aqui/não pode sair fora”.

Marcos Fabrício Lopes da Silva
Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.

Nenhum comentário: